terça-feira, 15 de março de 2011

Novidades

Está na rede o artigo que publiquei para a prestigiosa revista Devires - Cinema e Humanidades, também da UFMG. Ele tem o título de Algumas considerações sobre a música nos filmes de Jean Rouch. Um trecho que não foi possível incluir na edição final dava conta das técnicas usadas pelo cineasta para realizar a montagem sonora de seus filmes, quando ele não tinha ainda os recursos para fazer tal operação de modo satisfatório:

"Em entrevista concedida a Colette Piault, Rouch esclareceu que a banda sonora foi gravada e editada em “condições totalmente artesanais”. As imagens foram montadas sem a sincronização com o som, operação realizada posteriormente, segundo Rouch, “seguindo a técnica dos disc-jóqueis”. Assim, as músicas e sons ambientes foram transcritos para discos de vinil de 78 rotações. Durante a operação de mixagem, eram tocados e trocados à medida que o filme era projetado na frente de Rouch, ao mesmo tempo em que o cineasta falava os seus comentários e tudo era gravado em tempo real, para ser depois editado definitivamente no filme (PIAULT; ROUCH, 1996)."


Também usei este método artesanal em algumas edições que realizei nos anos 1980, por absoluta falta de equipamento para uma mixagem profissional. Vou fazer mais comentários sobre este trecho e o artigo em si em breve.


Bibliografia



PIAULT, Colette; ROUCH, Jean. Parole domineé, parole dominante... . Ciné-action (Jean Rouch ou le ciné-plaisir), n.81, 4o trimestre, pag. 149-160, 1996 

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O que pode uma montagem?

"Montar ou editar consiste em escolher e justapor. Apenas isso. É uma operação simples, comum a toda linguagem. No cinema não é diferente. Quem se exprime por meio da linguagem cinematográfica seleciona e combina imagens e sons".


Estas são as frases que abrem o artigo (Des)importância da montagemde um dos maiores montadores da história do cinema praticado no Brasil, Eduardo Escorel. Ainda o problema da definição, mas de um ponto de vista mais rés-o-chão. O filme visto na primeira aula desta semana, Santiago, montado pelo mesmo Escorel, parece de certa forma contradizer na prática a intenção teórica de "relativizar o poder da montagem" buscada pelo autor do texto. Como sabemos, trata-se de um filme que foi abandonado na montagem e retomado treze anos depois, quase que inteiramente composto pelas imagens filmadas e pelos depoimentos captados inicialmente, porém montados sob um conceito bastante diverso daquele que as produziu, um novo conceito expresso explicitamente na narração (segundo Salles, proposta por Escorel) e na música adicionados posteriormente. Ou seja, é um filme nada simples, onde a montagem se mostra como determinante e não apenas condicionada pelas etapas anteriores. 



Santiago, de João Moreira Salles, montado por Eduardo Escorel


Não nos devemos esquecer que, em seu texto, o diretor-montador está se contrapondo a algumas teses professadas principalmente nos escritos de Eisenstein sobre o seu próprio trabalho no período do cinema silencioso e as de Orson Welles (também sobre seu próprio trabalho), que, sempre segundo os textos citados no artigo de Escorel, declarou que a "montagem não é um aspecto, é o aspecto" e que "é toda a eloqüência do cinema que se fabrica na sala de montagem". É uma tomada de posição contra quem acredita que a montagem é onipotente (o que parece ecoar uma constatação recorrente de quem trabalha profissionalmente com edição - como já foi o meu caso - a de que algumas vezes colocam sobre os ombros do montador toda a responsabilidade de solucionar problemas originados no roteiro ou na filmagem). A posição de cineastas como Tarkovski, no plano teórico e Sokurov, no prático, serve de base para Escorel contrapor diversos argumentos a essa noção, que dá a primazia para a montagem na constituição de um filme. Mais adiante no texto ele parece conceder que essa mentalidade se origina de uma concepção mais integrada da realização de um filme (com a qual comungo), tomando os procedimentos de montagem como presentes desde a concepção inicial do trabalho, elaboração do roteiro etc. 


O poder da montagem talvez seja um dos temas centrais de Santigo, que tem como subtítulo "uma reflexão sobre o material bruto". Se "material bruto" é algo que deve ser lapidado, é talvez uma operação mais profunda o que se faz em uma moviola, em uma ilha de edição ou, hoje em dia, em um computador quando empreendemos uma montagem. Em um debate sobre este filme, realizado em Belo Horizonte no Cine Humberto Mauro logo após sua exibição, o diretor esclareceu que hoje ele entende que o problema da primeira versão de Santiago é que ele tinha a pretensão de controlar tudo o que viesse de seu personagem, o gestual, as palavras ditas por ele, o modo como ele contava sua extraordinária história de vida, além dos elementos formais do filme. Por isso, como ele contou, acabou ficando com um material que nunca chegaria ä perfeição exigida, pois lidava com o fator humano. Se formos pensar na obra de Salles, podemos dizer, por exemplo, que uma vida é algo bem menos totalizável e controlável do que uma caracterização de um território ou de uma dita cultura nacional, como ele havia elaborado em China e América, os seus primeiros trabalhos documentais. 


Ele contou ainda que encontrar Eduardo Coutinho, de quem produziu todos os filmes desde Babilônia 2000, mudou a sua forma de pensar o cinema.  Salles aprendeu, por exemplo, que as palavras mais detestadas por Coutinho eram “perfeição” e “pureza”. A concepção de documentário que essas palavras expressam se materializaram no  enquadramento rigoroso e na tentativa de controlar tudo o que seria mostrado ao espectador em Santiago, o que amarrou e paralisou o trabalho posterior com aquele material. O pior talvez tenha sido o fato, admitido na própria narração, de que essa concepção original tenha impedido que o diretor se aproximasse realmente do personagem, que o ouvisse além do que já havia sido previamente pensado que ele poderia dizer.


O papel da narração foi determinante na nova concepção que norteou a versão final de Santiago, que no filme esclarece os motivos da retomada da produção e o que mudou entre o que foi iniciado em 1992 (quando praticamente não havia produção de cinema no Brasil, devido à extinção da Embrafilme, o que torna o seu abandono ainda mais carregado de  significados) e o que foi terminado em 2005 (aliás o paralelo entre este filme e Cabra marcado pra morrer, de Coutinho, como dois filmes retomados muitos anos depois sob concepções diferentes, pode também ser pensado e deve ser elaborado em outro texto). Uma concepção que dá valor aos trechos em que Santiago tentou escapar do controle exercido pelo cineasta, mesmo que isso exigisse mostrar apenas o áudio. Um detalhamento do processo pelo qual o material passou, contado pelo próprio cineasta, pode ser bastante esclarecedor sobre isso.



João Moreira Salles contou que voltou ao material bruto de Santiago porque passava por uma crise que chamou de existencial e que talvez trabalhar com o filme que ele não havia conseguido terminar poderia ajudá-lo a se curar. Começou tentando organizar segmentos  de filme possíveis. Tinha cinco horas de gravação com Santiago e mais algum material filmado na antiga casa da família Salles, onde ele havia passado a infância com os pais, irmãos e empregados, entre eles o mordomo. Paulatinamente, foram surgindo pequenas sequências, cada uma relativa a um aspecto do personagem Santiago e da relação entre ele e a família e entre ele e Joãozinho, como ele chamava o cineasta no set. Quando viu que tais segmentos poderiam ser articulados em um todo, Salles chamou Eduardo Escorel e a montadora Lívia Serpa e eles procuraram trabalhar com aquele material, totalizar um filme de alguma forma. Eles começaram a pensar em uma narração que pudesse trazer mais coerência, que Salles ia escrevendo em seu computador na própria ilha de edição, enquanto montava as imagens com Escorel. Aqui o diretor se deparou com alguns dos dogmas do chamado cinema direto, onde o som é sempre gravado em sincronia com a imagem, uma modalidade de cinema que geralmente não apresenta intervenções externas a esse conjunto audiovisual, como locuções e músicas pós-sincronizadas, ou seja, adicionadas na montagem.


Para o site Overmundo, ele declarou: "quis fazer um filme sem ortodoxia. Quem realmente disse que não pode colocar trilha? Se acho uma música bonita, por que não posso colocar? O filme não tem imposição. Vale tudo! Acabaram as regras". 


Escorel gravou uma primeira versão da narração que se ouve no filme, escrita em primeira pessoa por Salles. Depois o próprio cineasta, a pedido dos que já haviam tomado contato com o material, gravou novamente esse texto. Salles ainda experimentou gravar com o ator Fernando Alves Pinto (protagonista de Terra Estrangeira, filme de seu irmão Walter Salles com Daniela Thomas), voz que acabou por ficar nas versões internacionais. Achou a gravação de Pinto por demais distante e a sua por demais próxima das imagens e sons anteriormente captados. Enfim, o que ficou foi o que ele pensou ter sido um meio termo, uma narração de seu texto pela voz de Fernando, seu irmão, que havia vivido boa parte dos eventos documentados no filme, mas que introduzia "um grau a mais nessa questão de o que é verdadeiro e o que não é", para deixar o filme um pouco menos pessoal, apesar de usar a primeira pessoa várias vezes no texto. 


A narração se mostrou a principal responsável pelo novo caráter do filme, que reforça as relações assimétricas de poder entre ex-patrão e ex-empregado e faz uma reflexão sobre o poder do cinema (e da montagem) de criar uma nova realidade, ao constatar, por exemplo, que a piscina pode ter sido agitada por alguma mão fora-de-quadro ou que o boxeador que iria ilustrar uma das histórias de Santiago foi maquiado e molhado para simular suor e ampliar a carga dramática. Então a narração e as confissões que desvelam as entranhas do fazer documental estão relacionadas em uma mensagem que o diretor faz questão de explicitar: há que se ter uma desconfiança. E  é para o espectador que essa mensagem é dirigida. A possibilidade de controle dada ao cineasta pelo aparato cinematográfico deve ser objeto de questionamento. O poder da montagem é também o poder do cineasta de fazer-ver (e ouvir) e o modo como Salles o explicita é um lembrete para o espectador da frágil  posição em que se encontra, tema desenvolvido com profundidade nos artigos de Jean-Louis Comolli apresentados no livro "Ver e Poder" (Editora UFMG).

Ao final do texto, Escorel cita artigos tardios de Eisenstein que definem a montagem  como “princípio unificador [que] gera em todo filme, na mesma medida, tanto o conteúdo de cada fotograma quanto o conteúdo que é revelado através da justaposição desses fotogramas”, se indagando se essa seria uma forma de conciliar a posição do diretor de Ivan, o Terrível com a de Tarkovski. Escorel parece pretender chegar a um meio termo, mas talvez seja preciso examinar as circunstancias de cada produção, pois Santiago parece mostrar que a maturação de uma concepção de cinema, como aconteceu com Coutinho, também implica em uma transformação nas possibilidades da manipulação posterior do material filmado e gravado. 



Escorel encerra o artigo com a tese de que o "potencial expressivo máximo" de um filme seria único, ou seja, que haveria uma "solução correta" entre todas as possíveis, concordando com Tarkovski, segundo o qual, a montagem final seria "a variante ideal de uma colagem de planos contida a priori no material filmado". Apesar de ter afirmado, em entrevista para o catálogo do forum.doc, que "há filmes de ficção reinventados na sala de montagem", Escorel mantém sua posição nessa mesma entrevista, embora a relativize, ao definir que "montar seja um trabalho de decifrar um sentido que já está contido, ou, pelo menos, sugerido nas imagens e sons reunidos, sentido que, nem sempre, é evidente". Por isso ele conclui que não há diferenças significativas entre montar ficção e documentário.

Se formos pensar nos exercícios que fizemos em sala de aula, podemos pensar nessas questões de outra maneira?

Afinal, o que pode uma montagem?





quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Algumas definições de Montagem e Edição


No Brasil, “montagem” é um termo normalmente mais relacionado com o cinema e “edição,” com a televisão. Na prática eles muitas vezes são usados de forma indistinta, mas na teoria de cinema alguns autores estabelecem diferenças entre os dois conceitos.

“Cortar [cutting] ou editar [editing] um filme é ligar os planos fisicamente na ordem em que eles devem ser projetados” (Kawin, 1992: 49)

“Planos e cortes compõem praticamente todo o mundo visual do filme, tanto quanto as palavras e sua ordem compõem a frase, ou uma sequência de frases torna-se um livro. O termo genérico para o que foi organizado no âmbito do plano é mise-en-scène. O termo genérico acerca de como os planos estão ligados é montagem [montage] (Estes são dois dos mais importantes e problemáticos termos nos estudos de cinema ...) [...] o espectador interpreta a montagem para estabelecer o que esses pontos de vista distintos podem ter a ver um com o outro” (Kawin, 1992: 51).

“A edição [editing] é a arte de tomar decisões sobre o comprimento do plano, seleção e sequenciamento. Corte [Cutting] é o ato de emendar pedaços de filme. Decidir o quanto incluir de um plano em um filme, sugerir e manipular sua matriz interpretativa, cortando entre dois planos, é o trabalho do editor do filme” (Kawin, 1992: 436).

“Quando um filme é feito de mais de um plano, a edição entra em jogo. Quando um plano não se limita a seguir um outro e sua justaposição tem um significado dinâmico, não se trata de edição, mas de montagem. O termo francês para a edição de continuidade é découpage: ele denota uma sequência ordinária de cortes, onde um plano segue o outro de um modo linear e fácil de se acompanhar. “Montage” - do verbo francês "monter”, “subir, montar ou juntar" - indica a forma como é montado um plano ao lado de outro, mas não tem a conotação de uma ascensão ou de efeito intensificado. Montagem, então, é a arte de reunir planos separados em um sistema dinâmico” (Kawin, 1992: 98).

Kawin, Bruce. How Movies Work. Berkeley: University of California Press, 1992

“Como a edição é uma forma de comunicação, tem havido uma tendência perene na história da teoria do cinema em associar a edição com o paradigma da comunicação, linguagem [...] Para compreender a edição devemos entender isso como uma forma de comunicação, sem tentar reduzí-la a um modelo de escrita e leitura” (Carroll, 1996: 403).

Carroll, Noël. Theorizing the Moving Image. Cambridge University Press, 1996.

Edição pode ser pensada como a coordenação de um plano com o próximo. Como vimos, no filme, um plano é um ou mais fotogramas expostos em série, em uma extensão contínua de película. O editor de cinema elimina as imagens indesejadas, normalmente descartando todas, menos a melhor tomada. O editor também corta fotogramas supérfluos, tais como os que mostram a claquete, no começo e no final dos planos. Ela ou ele, em seguida, junta os planos desejados, o fim de um no começo do outro (Bordwell e Thompson, 1995: 271).

Bordwell, David e Thompson, Kristin . Film Art. New York: McGraw-Hill, 1995.

Como vimos em sala, Alfred Hitchcock tem sua opinião sobre tais termos, preferindo a palavra "assemblage", que não tem um equivalente em português. A entrevista do diretor pode ser assistida nesse link (a incorporação dele no blog foi desativada pelo YT): http://www.youtube.com/watch?v=2FoYrmNICYc .

Tanto a definição preferida e demonstrada por Hitchcock, como as expressas nos textos acima não devem ser tomadas como dadas, mas discutidas aqui e em sala, não para chegar a algo definitivo, mas para tentar compreender o processo como um todo, que prefiro ver como parte de toda a produção de cinema e não apenas da chamada pós-produção, aquela que ocorre após as filmagens (até porque a montagem pode muito bem começar durante as filmagens, na verdade antes delas, como vimos em sala).

Aguardo os comentários da turma.